«A ressurreição da palavra», de Victor Shklovsky
A palavra-imagem e seu sepultamento. O epíteto como um meio de renovação da palavra. A história do epíteto — a história do estilo poético. O destino das obras dos antigos artistas da palavra é da mesma natureza do destino da própria palavra: elas percorrem a jornada da poesia para prosa. A morte das coisas. O objetivo do futurismo — a ressurreição das coisas — é retornar à pessoa experienciando o mundo. A conexão dos dispositivos da poesia futurista com os dispositivos linguísticos gerais do raciocínio. A linguagem semicompreensível da poesia arcaica. A linguagem dos futuristas.
A mais antiga criação poética da humanidade foi a criação de palavras. Agora as palavras estão mortas e a linguagem é como um cemitério, mas uma imagem um dia esteve viva na palavra recém-nascida. No cerne de toda palavra: um tropo¹. Por exemplo, mesyats: o significado original dessa palavra era “medidor”; gore e pechal’ significam aquilo que flameja e queima; a palavra “enfant” (assim como “otrok” no russo antigo) em uma tradução literal significa “não-falante”. Tantos exemplos quanto há palavras na linguagem poderiam ser aduzidos. E amiúde quando você atravessa até a imagem, que agora é perdida e esmaecida, mas esteve cravada na fundação da palavra, então você é atingido pela sua beleza — pela beleza que existiu e agora não é mais.
Quando as palavras substituem conceitos gerais em nosso raciocínio e efetuam-se, por assim dizer, símbolos algébricos, devem necessariamente ser desprovidas de imagens, tal qual quando são usadas no discurso cotidiano e não são completamente enunciadas ou completamente ouvidas — então, elas se tornaram familiares, e suas formas interna (imagem) e externa (som) deixaram de ser experienciadas. Nós não sentimos o familiar, nós não o vemos, mas o reconhecemos. Nós não vemos as paredes de nossos quartos, e é tão difícil identificar o erro ao conferir uma prova — particularmente se está escrito em uma língua bem conhecida nossa, porque não somos capazes de fazer-nos ver e continuamos lendo assim mesmo, e não “descobrimos” a palavra familiar.
Caso desejássemos definir a percepção “poética” e “artística” em geral, então sem dúvida iríamos esbarrar na definição: percepção “artística” é a percepção em que a forma é experienciada (talvez não apenas a forma, mas a forma é a parte essencial). É fácil demonstrar a exatidão dessa definição “operacional” nos casos em que uma ou outra expressão, tendo sido poética, torna-se prosaica. Por exemplo, é evidente que as expressões o “pé” da montanha ou o “capítulo”² de um livro, em sua passagem da poesia para a prosa, não mudaram de significado, mas apenas perderam sua forma (nesse caso, a forma interna). Um experimento proposto por A. Gornfel’d no artigo Tormentos da Palavra, traduza as palavras no poema:
“Versos como moedas são cunhadas
Estrita, precisa, honestamente.
A regra persevera:
Palavras serão concisas,
Pensamentos — expansivos…” ³
Ter certeza de que, com a perda da forma (nesse caso, a forma externa), o poema se transforma em um “aforismo didático vulgar” confirma a exatidão da definição proposta.
Portanto: a palavra, à medida que perde “forma”, completa a jornada irrevogável da poesia para a prosa.
A perda da forma da palavra representa uma enorme facilitação para o raciocínio e pode ser uma condição necessária para a existência da ciência, mas arte nunca poderia satisfazer-se com essa palavra corroída. Dificilmente poderia dizer-se que a poesia já reparou o dano que sofrera pela perda da figuratividade das palavras ao substituí-la por um tipo de inventividade maior — por exemplo, pela criação de personagens-tipo — porque nesse caso a poesia não se teria apegado tão avidamente à palavra figurativa mesmo em estágios tão altos de sua evolução na era das crônicas épicas. Na arte, o material precisa ser vivo e precioso. E aí é que apareceu o epíteto, que não introduz nada de novo à palavra, mas simplesmente renova sua figuratividade morta; por exemplo: o sol claro, o guerreiro combatente, o mundo todo, chafurdar na lama, chuva esparsa… a própria palavra “chuva” contém o conceito de espalhar-se, mas a imagem morreu e a sede pela concretude, que constitui a alma da arte, exigiu sua renovação. A palavra, revitalizada pelo epíteto, tornou-se poética novamente. O tempo passou — e o epíteto deixo de ser experienciado — de novo graças à familiaridade. E o epíteto começou a ser manuseado pelo hábito, devido a tradições escolásticas e não através da sensação poética viva. Além disso, o epíteto é experienciado tão pouco a essa altura que é bem comum que confunda a condição geral e a pintura de uma imagem; por exemplo:
Você não queima o sebo da vela,
Sebo da vela de cera acesa,
(Canção popular)
Ou as “mãos brancas” do mouro (nos épicos sérvios), “meu verdadeiro amor” nas baladas em inglês antigo, um termo utilizado indiscriminadamente — seja o caso tanto de um amor verdadeiro ou falso, ou Nestor⁴, levando suas mãos para o céu estrelado em plena luz do dia, e assim por diante.
Epítetos constantes se desgastaram, não mais evocam uma impressão figurativa e não satisfaz suas demandas. Dentro de seus limites novos epítetos são criados, eles se acumulam, e as definições se diversificam com o uso de termos descritivos tomados do material da saga ou da lenda. Quanto mais recentes, mais os epítetos ganham em dificuldade.
“A história do epíteto é a história do estilo poético em edição resumida”. Essa história nos mostra como todas as formas de arte são cegadas na vida, formas que, assim como o epíteto, vivem, são soterradas e finalmente morrem.
As pessoas prestam muito pouca atenção para a morte das formas na arte, elas muito casualmente contrastam o antigo com o novo sem sequer pensar se o antigo está vivo ou desapareceu, como o som do mar desaparece para aqueles que vivem em sua orla, como o urro de mil vozes da cidade desapareceu para nós, como tudo familiar, demasiado conhecido, desaparece de nossa consciência.
Não apenas palavras e epítetos são soterrados, situações inteiras podem petrificar também. Logo, por exemplo, na edição de Bagdá das Mil e uma noites, um viajante, quem os ladrões deixaram nu, subiu uma montanha e em desespero “rasgou suas roupas em pedaços”. Nesse trecho, toda imagem congelou a ponto de tornar-se inconsciente.
O destino das obras dos antigos artistas da palavra é exatamente o mesmo destino da própria palavra. Eles estão percorrendo a jornada da poesia para a prosa. Elas deixam de ser vistas e passam a ser reconhecidas. Obras clássicas foram cobertas para nós pela armadura de vidro da familiaridade — nós lembramos delas em excesso, nós as ouvimos desde a infância, nós as lemos em livros, usamos suas citações em conversas, e agora temos calos em nossas almas — nós não mais as experienciamos. Estou falando das massas. Muitas pessoas pensam que as massas sentem toda arte. Mas como é fácil errar aqui! Não admira Gontcharov ceticamente comparar a sensação do classicista ao ler um drama grego com as sensações de Petrushka de Gógol. É quase sempre um tanto impossível assimilar arte antiga. Olhe os livros dos renomados conhecedores do classicismo — veja que vinhetas e fotos vulgares de esculturas quebradas eles põem nas capas. Rodin, tendo copiado as esculturas gregas por anos a fio, teve que recorrer a medí-las a fim de, eventualmente, transmitir suas formas; acabou que ele as esteve esculpindo muito finas o tempo todo. Então um gênio não conseguira simplesmente repetir as formas de outra era. E o arrebatamento do profano nos museus pode ser explicado apenas por sua atitude frívola e dócil frente sua própria assimilação da antiguidade.
A ilusão de que a arte antiga é experienciada é apoiada pelo fato de que elementos estranhos à arte estão quase sempre presentes nela. Tais elementos são de fato encontrados acima de tudo na literatura; então a literatura agora tem a hegemonia na arte e o maior número de conhecedores. O que é típico da percepção artística é nosso desinteresse em seu material. Euforia no discurso de defesa de um advogado no tribunal não é uma sensação artística, e, se nós sentimos a nobreza e humanidade dos pensamentos dos poetas mais humanos do mundo, essas sensações logo não têm nada em comum com arte. Elas nunca foram poesia, e portanto nunca sequer percorreram a jornada para a prosa. A existência de pessoas que põem Nadson acima de Tyutchev também mostra que os escritores são frequentemente valorizados pela perspectiva da quantidade de pensamentos nobres contidos em suas obras — uma régua bastante difundida, por sinal, pelos jovens na Rússia. A apoteose da experiência da “arte” da perspectiva de sua “nobreza” é o caso de dois estudantes de O Professor de Literatura de Tchekhov, em que um deles pergunta ao outro no teatro: “O que ele está dizendo ali? Algo nobre?” — “Sim, algo nobre”. “Bravo!”.
Saia pelas ruas, olhe para as casas: como as formas da arte antiga são aplicadas a elas? Você verá coisas um tanto assombrosas. Por exemplo, (uma casa na Avenida Niévski de frente à Rua Konyushennaya, uma construção do arquiteto Lyalevich) arcos semicirculares que assentam sobre colunas, e entre seus pilares estão inseridas arquitraves de pedra bruta, como arcos planos. Todo esse sistema possui molduras nas bases — não há apoios nos lados; logo a impressão geral resultante é que a casa está se esmigalhando e caindo.
Esse absurdo arquitetônico (sequer notado pelo público e críticos em geral) não se deve, nesse caso, à ignorância ou falta de talento do arquiteto.
O motivo é obviamente que a forma e o significado do arco (e a forma da coluna também, que também pode ser demonstrado) não são experienciados, e portanto usados sem sentido assim como o epíteto “de sebo” na vela de cera.
Agora, vejamos como as pessoas citam os autores antigos.
Infelizmente, ninguém ainda juntou citações incorreta e inadequadamente usadas; mas o material é interessante. Nas performances de dramas dos futuristas, o público gritou “décima primeira versta”, “loucura” e “enfermaria 6”⁵, e os jornais relataram esses uivos com alguma satisfação — enquanto com certeza em Enfermaria no 6 não havia nenhum louco, mas apenas um doutor tomando conta dela pela ignorância, cercado por idiotas, ao lado de algum tipo de figura de filósofo-sofredor. Então essa obra de Tchekhov foi (da perspectiva daqueles que gritaram) jogada de maneira completamente irrelevante. Nós observamos aqui, por assim dizer, uma citação sepultada, que significa a mesma coisa que a ausência de sensação do epíteto soterrado (no exemplo dado, toda obra petrificou-se).
As massas estão satisfeitas com a arte de mercado, mas a arte de mercado apenas demonstra a morte da arte. Um dia, as pessoas diziam umas às outras quando se encontravam: “zdravstvui” — agora a palavra morreu e dizemos uns aos outros “aste”. As pernas de nossas cadeiras, o desenho dos materiais, a decoração das casas, as pinturas da “Sociedade de Artistas de Petersburgo”, as esculturas de Gintsburg — tudo isso nos diz “aste”. Aqui o ornamento não é elaborado, é “contado” a fim de que as pessoas não os vejam, mas os reconheçam e digam “é a mesma coisa”. As eras de ouro da arte não compreendiam o que significa “móveis de bazar”. Na Assíria, o pau da barraca do soldado, na Grécia, a estátua de Hécuba, a protetora das fossas, na Idade Média, ornamentações colocadas tão altas que sequer podiam ser bem vistas — todas essas eram elaboradas, todas eram projetadas para a contemplação. Nas eras em que as formas de arte eram vivas, ninguém teria trazido monstruosidades de bazar para a casa. Quando a pintura artesanal de ícones se espalhou na Rússia do século XVII, e “nos ícones apareciam tal violência e absurdos que não eram apropriados para um cristão sequer olhar”, isso significava que as formas antigas já haviam sido suplantadas. Atualmente, a arte antiga já morreu, e a nova ainda não nasceu; e as coisas morreram — nós perdemos nossa consciência do mundo; nós somos como um violinista que parou de sentir o arco e as cordas, nós deixamos de ser artistas na vida cotidiana, nós não amamos nossas casas e roupas, e facilmente apartamo-nos vida de que não estamos conscientes. Somente a criação de novas formas de arte podem restaurar à humanidade a experiência do mundo, pode ressuscitar as coisas e matar o pessimismo.
Quando desejamos, em um surto de ternura ou rancor, acariciar ou insultar uma pessoa, temos para isso apenas algumas palavras gastas e vazias, mas então amassamos e quebramos palavras para fazê-las atingir o ouvido, para que elas sejam vistas e não reconhecidas. Nós dizemos, por exemplo, para um homem, “sua velha boba” para fazer a palavra arranhar; ou, entre o povo comum, usa-se o gênero feminino em vez do masculino para expressar ternura. Também nessa categoria entram todas as incontáveis palavras que são simplesmente mutiladas, tantas que usamos quando falamos em momentos de paixão e que são tão difíceis de lembrar.
E agora, hoje, quando o artista quer lidar com a forma viva e com as palavras vivas, e não as mortas, e quer conferir caráter à palavra, ele a quebrou e a mutilou. A palavra “arbitrária” e “derivada” dos futuristas nasceu. Eles ora criam novas palavras de uma velha raiz (Khlebnikov, Guro, Kamensky, Gnedov) ou a quebram pela rima, como Mayakovsky, ou lhes dão tônica incorreta pelo uso do ritmo no verso (Kruchenykh). Palavras novas e vivas são criadas. Os antigos diamantes das palavras recuperam esplendor inicial. Essa nova linguagem é incompreensível, dificultada, e não pode ser lida como o boletim da bolsa de valores. Sequer parece russo, mas nós nos tornamos muito acostumados a estabelecer a compreensibilidade como um requisito da linguagem poética. A história da arte nos mostra que (pelo menos, com muita frequência) a linguagem da poesia não é uma compreensível, mas uma semicompreensível. Logo, os selvagens quase sempre cantam em uma língua arcaica ou estranha, algumas vezes tão incompreensível que o cantor (ou, mais corretamente, o cantor principal) precisa traduzir e explicar para o coral e para o público o significado da música que ele acabou de compor.
A poesia religiosa de quase todos os povos é escrita no mesmo modo de linguagem semicompreensível. Eslavo eclesiástico, latim, sumério, que morreu no século 20 a.C. e foi utilizada como língua religiosa até o século III, o alemão dos estundistas russos (os estundistas russos preferiram por um bom tempo não traduzir os hinos religiosos alemães para o russo, mas aprender alemão).
Jakob Grimm, Hoffmann, Hebel, apontam que o povo comum quase sempre não canta no dialeto, mas em uma linguagem elevada, próximo à literária: “a linguagem encantada Yakut é diferenciada da linguagem cotidiana assim como nosso eslavo é da linguagem de conversação contemporânea”. Arnaut Daniel com seu estilo obscuro e formas dificultadas de arte (Schwere Kunstmanier), formas cruéis (harte), que nos apresenta dificuldades de pronúncia, o dolce stil nuovo (século XIII) dos italianos — todas essas são linguagens semicompreensíveis, enquanto que Aristóteles na Poética sugere dar à linguagem um aspecto estrangeiro. A explicação desses fatos é que esse tipo de linguagem semicompreensível parece ao leitor, devido à sua estranheza, mais figurativa (um fato notado, inclusive, por D.N. Ovsyanniko-Kulikovsky).
Os escritores do passado escreveram muito suaves, muito dóceis. Essas coisas eram reminiscentes daquela superfície polida da qual Korolenko falou: “através dela está o plano do pensamento, tocando em nada”. A criação de uma linguagem nova, tensionada, é necessária, dirigida à visão e não ao reconhecimento. E essa necessidade é inconscientemente sentida por muitos.
Os caminhos da nova arte foram apenas indicados. Não são os teóricos, mas os artistas que percorrerão esses caminhos adiante de todos os outros. Seja se os que criarão as novas formas serão os futuristas, ou se esse feito estiver destinado a outros — de todo modo, os poetas futuristas estão no caminho certo: eles avaliaram corretamente as formas antigas. Seus dispositivos poéticos são os dispositivos linguísticos gerais do raciocínio, simplesmente introduzidos por eles na poesia, assim como, nos primeiros séculos da cristandade, a rima foi introduzida na poesia, rima esta que provavelmente sempre existiu na linguagem.
A realização de novos dispositivos criativos, que também foram contemplados pelos poetas do passado — por exemplo, nos simbolistas — mas apenas por acidente — é por si só uma grande incumbência. E foi efetuada pelos futuristas.
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1 – Embora o uso contemporâneo remeta a motivos recorrentes ou mesmo clichês, a acepção aqui é anterior, enquanto um termo que remete a dispositivos retóricos e figurativos da linguagem. É por si só um exemplo da morte da palavra
2 – A raiz do latim capitulum significa “cabeça pequena”
3 – A tradução também demonstra seu argumento, mas no russo, ele sugere reordenar as palavras, mas : “Stikh, kak monetu, chekan’,/Strogo, otchetlivo, chestno./Pravilu sledui uporno:/Chtoby slovam bylo tesno,/Myslyam — prostorno, –”
4 – As referências literárias de Shklovsky são incrivelmente difusas, provavelmente para demonstrar a teoria geral que ele propõe. Esta última faz referência à Ilíada
5 – O “primeiro grito do público parece ser uma expressão russa que remete à estranheza e versta é uma medida de distância. A última é referência à obra de Tchekhov, explicada logo adiante.
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O texto original, Voskreshenie slova de 1914, foi publicado em Gamburgsky schyot (Pontuação de Hamburgo), em 1928 e reimpresso apenas em 1990 em Moscou. Essa tradução originou-se do confronto entre 1) sua versão em inglês, traduzido por Richard Sherwood na coletânea de Stephen Bann e John Bowlt, de 1973; 2) traduções literais direto do russo; e 3) os significados que esse texto representa na obra mais ampla de Shklovsky, segundo bibliografia da dissertação.