Projetando o comum contra a precarização

eduardo souza
19 min readNov 7, 2020

Esse texto corresponde aos capítulos 11 e 12 da tese de Bianca Elzenbaumer, «Designing Economic Cultures»

Tradução: Alline Albuquerque e Eduardo Souza. PDF para download.

O movimento Wages for nasceu na Itália em 72 e depois disso virou uma campanha internacional. As líderes foram Selma James, Mariarosa Dalla Costa, Silvia Federici e Brigitte Galtier. O movimento afirmava que o trabalho das mulheres em casa (manter a saúde da família e produzir futuros trabalhadores) sustentava a indústria e o lucro. Ver MCCANN, Hannah (ed.). O Livro do Feminismo. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019. (As grandes ideas de todos os tempos).

Introdução

A pergunta urgente que devemos nos fazer a essa altura é de que forma as práticas sociais de produção em que estamos envolvidos enquanto designers podem ser transformadas pela recusa criativa e coletiva dos procedimentos que nos precarizam. Para explorar possíveis estratégias de transformação das relações de poder e formas associadas de subjetificação, vamos primeiramente trabalhar por meio das ferramentas conceituais desenvolvidas a partir da tradição autônoma do pensamento marxiano (movimento autônomo, marxismo autônomo ou autonomismo). Além deste, utilizo também como conceitos de produção biopolítica, o comum e a recusa do trabalho desenvolvida por Michael Hardt e Antonio Negri e as propostas de transformação que Kathi Weeks e Judith Revel fazem em relação a esses conceitos. Assim, através de tais conceitos e propostas de prática, foi construído e anexado ao presente capítulo o desenvolvimento de sabedorias geradas durante a segunda residência, nomeada “Cantiere per pratiche non-affirmative” (Área de construção para práticas não-afirmativas). Das necessidades, obstruções e aberturas que surgiram dessa residência, a pesquisa se encaminhou em direção aos escritos feministas autônomos, particularmente os de Silvia Federici, Mariarosa Dalla Costa e Massimo De Angelis, que são especialmente preocupados com as práticas sociais que pressupõem a superação da precarização, o que Federici chama de “permanente crise reprodutiva.” [1]

As duas correntes de pensamento empregadas aqui são consideradas abordagens úteis para desfazer procedimentos de precarização têm suas raízes no Operaísmo, que desenvolveu-se na Itália na década de 1950, dando margem para outras formas de pensar [2]. O Marxismo autônomo contemporâneo tem sua base no pensamento pós-estruturalista de Foucault, Deleuze e Guattari, com foco particular no potencial subversivo dos “mais avançados” setores dos trabalhadores, i.e. trabalhadores cognitivos, no qual qualificam-se os designers. É atrativo para designers considerar a possibilidade da ação contra-hegemônica para precarização pautando-se em conceitos do marxismo autônomo porque tal abordagem rejeita história como uma progressão linear e entende o capitalismo como um sistema em que a relação social do capital cria e se apoia na relação dialética entre duas subjetividades: uma informada pelo capital e outra pelo trabalho [3]. Assim, como teoria política, essa linha de pensamento dentro do marxismo enfatiza a autonomia e criatividade do trabalho como força motriz não-linear da história. Nos anos 70, vendo como a origem do pós-fordismo já se espalhava do chão de fábrica para toda a sociedade [4], os marxistas autônomos declararam sua recusa por “separar economia da política e política da existência” [5]. Isso os conecta ao pensamento feminista autônomo, cuja origem é uma crítica feminista a Marx, mostrando que não só trabalhadores assalariados são produtivos para o capital. No entanto, essas feministas enraizaram fortemente seus escritos nas experiências concretas de outras feministas como esforços “anti-” e “pós-coloniais” e, ao contrário dos marxistas autônomos que focaram no trabalho imaterial, elas insistem que essa subversão poderia emergir em qualquer ponto da corrente de produção e exploração global.

Estudando esses dois fios condutores para construir estratégias contra os procedimentos de precarização, nos apoiamos no fato de, por um lado, essas teorias conectarem-se com as análises foucaultianas de poder, sendo essas estruturas difusas em nossa sociedade — assim, contrapoder tem potencial de emergir a qualquer ponto — enquanto, por outro lado, elas se constróem a partir da tradição do trabalho, sujeitos femininos e coloniais que “autonomamente” [6], mas ainda coletivamente, desafiam a exploração da relação social do capital. Então, engajaremos, tanto pela teoria quanto pela prática, com conceitos autonomistas de subjetificação, produção e reprodução, a recusa ao trabalho, o comum e as práticas do comum como os alicerces deste capítulo. Os conceitos que foram desenvolvidos ao longo da parte 1 e do Interlúdio [da tese] serão empregados como ferramentas para construção de abordagens temporais subversivas, inovação e relações sociais para desafiar a precarização, enquanto ao mesmo tempo, construir culturas econômicas que funcionam de acordo com valores além dos da precarização pelo capital.

Esquema elaborado pelos tradutores para delinear a fundamentação teórica apresentada na Introdução.

Marxismo autônomo, subjetividade e recusa ao trabalho

Para os pensadores autonomistas, concordando com o pensamento pós-estruturalista, a produção de subjetividade é o maior terreno em que as disputas políticas se dão. Começando com essa abordagem, podemos imaginar, como designers, que processos de subjetivação podemos engendrar para romper com as subjetividades dóceis mas produtivas encorajadas pela educação de design, pela indústria criativa, entre outros, que em última instância contribuem para precarizar os designers. Na Parte 1 e no Interlúdio, vimos as relações de poder das quais a precarização depende, localizamos sua posição, achamos seus múltiplos pontos de aplicação e vimos alguns dos métodos educacionais e discursivos por meio dos quais o poder é aplicado; agora vamos explorar em que medida o pensamento autonomista pode nos ajudar a recusar o tipo de precarização e individualização que enfrentamos[7].

Marxistas autônomos argumentam que embora trabalhadores sejam submetidos ao capital e pelo menos uma porção da riqueza produzida por eles seja constantemente roubada, eles não são totalmente impotentes. Na verdade, o capital os enxerga com extremo potencial porque através do trabalho, constituído pela criatividade e habilidade, eles são a origem da riqueza [8]. Ver a si mesmos como poderosos e numa posição de ação é importante quando a precarização tende a entristecer os trabalhadores. No entanto, esses marxistas também enfatizam que, para que possamos usar essas habilidades e o tempo do trabalhador para resistir ao status quo, é necessário ação coletiva para que essa ação vá além do indivíduo. Dado o aumento da fragmentação da classe (não apenas os designers mas de todo proletariado), essa abordagem envolve a necessidade que se encontrem estratégias que os permitam a criação coletiva engajada com o contra-hegemônico. Entretanto, esse movimento contra precarização não pode ser primariamente sobre trabalhar no que é mais estável e seguro. Em vez disso, precisa ser um processo focado na transformação para “outra coisa” [9], coisa essa que requer inventividade, criatividade e experimentação — o que, de fato, pode ser potencialmente transformador para os designers envolvidos. Para engajar com as propostas feitas não só por Hardt e Negri mas também com aqueles próximos a eles como a pensadora foucaultiana Judith Revel e a teórica feminista Kathi Weeks, nos permita explorar o potencial das elaborações deles sobre a produção biopolítica, o comum e a recusa ao trabalho em razão da precarização dos designers.

Uma metáfora instrutiva para o conceito de biopolítica é o controle exercido pelo Grande Irmão de «1984», de George Orwell. A vigilância controla não apenas todos os comportamentos, mas se estende até a linguagem com o objetivo de controlar os pensamentos.

Designers, produções biopolíticas e o comum

Começando da análise das sociedades de controle e os modos em que o trabalho imaterial (dentro do qual coloco o design) é manifestado dentro de tais sociedades [10], Hardt e Negri teorizam sobre os modos de produção pós-fordistas como campos potenciais em que o processo de “tornar-se outro” pode ser alocado. Isso acontece porque eles veem a produção pós-fordista como foco para a produção de ideias, códigos, afetos e relações sociais que são todos lugares de produção subjetiva na qual há um grande potencial de mobilização para um processo transformador [11]. Ao enquadrar o trabalho pós-fordista dentro do terreno da produção de subjetividade, Hardt e Negri utilizam as noções de biopoder e biopolíticas de Foucault. Assim, a partir de suas leituras da teoria foucaultiana, eles identificam biopoder como o poder anátomo-político do corpo e, por outro, em uma biopolítica da população [12]. Eles vão além, afirmando que a produção pós-fordista como produção biopolítica, apesar de alimentar a acumulação do capital através da cooperação, autonomia e networking [13], produz “o comum”. O comum, como descrito por Hardt e Negri, são formas de conhecimento, linguagem, códigos, informação e afetos que não podem ser considerados públicos ou privados, nem regulados pelo Estado ou indivíduos, mas, pelo contrário, pela comunidade de produtores e usuários [14]. Eles também definem a produção do comum como a produção de subjetividade que é potencialmente contra-hegemônica. Ao explorar o potencial do comum pela diferença entre privado e público, é importante manter em mente que no pensamento marxista autonomista esses dois espaços são considerados como representações do capital, já que o Estado burguês garante o direito à propriedade privada como alicerce de uma sociedade capitalista enquanto administra a propriedade pública de acordo com suas próprias leis governamentais que muitas vezes não respondem aos desejos e necessidades da população [15].

Quando consideramos agora as múltiplas maneiras de praticar design, sem dúvida alguma podemos ver em qual categoria de produção biopolítica ela se encaixa, desde imagens e imaginários criados, códigos desenvolvidos, afetos produzidos e relações sociais forjadas. No entanto, do ponto de vista da prática, seria difícil argumentar que o trabalho biopolítico de designers, mesmo dentro das instâncias em que criam o comum, automaticamente promovem atos de resistência. Mais frequentemente é o contrário. Nesse sentido, os escritos de Paolo Virno sobre como o trabalho pós-fordista representa apenas o potencial para a criação de um novo mundo, potencial esse que não necessariamente irá acontecer de fato [16], é por si só significativo. Lembra a nós designers que para “tornar-se o outro” que constrói alternativas de desprecarização, a produção biopolítica em que eles devem engajar deve ser, em várias camadas, politizada. No entanto, como vimos, de acordo com os problemas da precarização política e socialmente engajada que designers enfrentam, não é sustentável a longo prazo engajar apenas numa produção biopolítica politizada do comum. Nessa problematização a partir do pensamento de Hardt e Negri, Matteo Pasquinelli reflete sobre práticas do dia a dia em torno da produção do comum:

Conflito imaterial é a norma entre trabalhadores intelectuais apesar da retórica por parte do compartilhamento de conhecimento. Um exemplo disso é a conhecida rivalidade entre a academia e o mundo da arte, da economia das referências, a corrida dos prazos e a competição por vagas em festivais e entre os próprios festivais, a inveja e a suspeita sobre as atitudes entre os ativistas [17].

O conflito é a norma porque, embora Hardt e Negri apontem corretamente que as ideias não perdem o potencial de funcionamento quando compartilhadas com os outros,[18] as condições salariais no pós-fordismo aparentemente seguem as mesmas leis de sempre [19]. Por isso, a rivalidade entre trabalhadores intelectuais não surge do comum que criam — por exemplo, códigos abertos, linguagens, conhecimentos e afetos — mas por suas funções na economia real. Se uma ideia é atribuída a um autor ou um comum é produzido e partilhado de graça, é difícil pagar os boletos com isso. Ao contrário de comuns materiais e sociais que reproduzem os bens que nutrem ou abrigam pessoas, o comum imaterial produzido por trabalhadores cognitivos não faz nada disso. Então, não é possível romper com nossa dependência do trabalho assalariado, pois ganhar dinheiro para pagar nossas próprias necessidades de reprodução ainda é uma exigência para nós que produzimos o comum [20].

MakerBot™, uma impressora 3D que se apropria da produção do comum e do “design aberto”.

De maneira mais positiva, entretanto, a produção biopolítica do comum pode também estar ligada à produção material como nos casos de “design aberto”, cujos produtores permitem sua distribuição gratuita, documentação e modificação [21]. Aqui, nós podemos fazer uma série de perguntas para considerar se, e em que medida, esse caso pode ser empregado estrategicamente para resistir a precarização e determinar uma produção alternativa de subjetividade. Nós poderíamos perguntar: qual é a linguagem que os designers usam para descrever o design aberto e o que ela nos diz sobre uma possível transformação inerente a esse tipo de design? O que designers e produtores por trás de impressoras 3D, como o MakerBot, querem dizer quando eles perguntam “que tipo de projeto podemos, como uma comunidade global de compartilhamento, fazer em conjunto?” [22] O que eles querem dizer com “projeto” e qual é a pauta política dos projetos que eles podem ter em mente? Eles concebem isso em relação ao que se referem como sucessos da impressão 3D, como a impressão de copos de vodka durante uma feira de tecnologia? O que eles querem dizer com “comunidade global”? Essa comunidade, em algum sentido, inclui aqueles que mineram os materiais necessários para a impressão 3D? O que eles querem dizer com “compartilhar”? Esse compartilhamento também se refere aos lucros oriundos da venda de kits de impressão 3D, que agora valem $10 milhões? [23] Se as respostas para todas essas perguntas exploratórias nitidamente replicam as práticas-valor capitalistas que dependem de exploração e fragmentação, então as implicações em termos de romper a precariedade das correntes de pessoas envolvidas não parecem promissoras. Em vez disso, isso pode simplesmente levar a uma nova etapa de acumulação similar ao que Marx descreveu na indústria de algodão do século 19, quando a produção do “escravo-algodão” estava ocorrendo dentro das moradias das pessoas e o valor dessa produção era extraída e canalizada para as mãos de alguns poucos [24]. Se, entretanto, as respostas revelarem práticas-valor que desafiam a relação social do capital e em vez disso reapropriarem valor de modos que são deprecarizantes para muitos, então nós começaremos a ver desdobramentos de processos potentes de “tornar-se outro”.

Cabe perguntar para quem essa autonomia da “cultura maker” é acessível.

Para que essas respostas transformativas se tornem uma possibilidade, é necessário que os designers se engajem nas complexidades dos processos que vão além do comum das linguagens, imagens, códigos e conhecimentos que produzem. Atualmente, vários exemplos de design aberto se encaixam no que a P2P Foundation, estudando o impacto da tecnologia par-a-par, descreve como a possibilidade de empresas grandes e privadas de criar e capturar valor ao redor do comum e sobre ele [25]. A recomendação da P2P Foundation para as corporações que podem estar com medo do design aberto e da economia colaborativa é ver o comum como uma fonte de conhecimento e inovação e como um conjunto de valores ao qual elas podem contribuir em pequenas porções, mas da qual recebe uma totalidade do comum de volta: “Me dê um tijolo, ganhe uma casa.” [26]. Esse movimento — que não está preocupado em transformar substancialmente a economia, mas transformar o modo como a acumulação acontece — não responde às condições de trabalho das pessoas envolvidas na produção de valor. O MakerBot, por exemplo, além do trabalho integrado em sua realização, depende da disponibilidade de designs grátis online em sites como o Thingiverse, enquanto a própria impressão 3D, os materiais para impressão ou para as publicações para a comunidade 3D são mobilizados de maneira lucrativa. Nesse sentido, o comum representado por software e design livres é crucial na venda de mais hardware. Então, por exemplo, a promessa feita pelo design aberto e pela impressão 3D de nunca mais precisar comprar nada se esvazia, já que o ato de comprar ainda é indispensável, mas simplesmente troca uma mercadoria por outra. Nesse sentido, a produção do comum por meio do design aberto se utiliza em uma linguagem capaz de mobilizar o desejo das pessoas para outro modo de produzir e viver, mas na realidade não os auxilia na construção de uma economia que pode abastecer o processo coletivo de deprecarização.

Entretanto, mesmo que, por enquanto, a teorização de Hardt e Negri da produção de biopolítica como resistência realmente não pareça ter efeito no trabalho dos designers, ainda é um poderoso lembrete do potencial de mudança inerente a essas competências. Isso pode instigar os designers a direcionar a criação de conhecimento, afetos, relações sociais, códigos e linguagens para a construção de caminhos contrários à precarização.

Designers dentro da multitude

Para construir caminhos contrários à precarização (em termos do pensamento autonomista), o conceito de “a multitude” é outro elemento que pode ser uma inspiração para os designers, dado que aponta para a possibilidade de comunhão pautada no comum produzido pelo trabalho biopolítico. Essa comunhão, à medida que produz o comum, é então imaginada como provedora tanto dos meios de controle quanto da possibilidade de expressar as diferenças livremente [27]. Nesse sentido, Hardt e Negri imaginam a multitude como uma estrutura organizacional que fornece os meios de construção da democracia; não aquela baseada nas estruturas e relações formais, mas sim em como nos relacionamos uns com os outros [28]. Os autonomistas traçam o conceito de multitude relacionado à democracia até Spinoza, que no século 17, teorizou-o como um conceito político contrário ao que Hobbes teorizou como “o povo”, que fundamentava todo projeto do estado nacional. Logo, enquanto conceito, ele localiza o elemento criativo constitutivo da sociedade como interno ao próprio povo, em vez de estar em um movimento de poder de cima para baixo [29].

Um exemplo de multitude poderia ser o movimento de ocupação do Cais José Estelita em 2013, na cidade do Recife. Para proteger o terreno público de empreiteiras, ele foi ocupado e realizaram-se atividades de transformaram a vivência da cidade. Mais informações aqui.

Ao considerar a multitude conforme descrita por Hardt e Negri, fica claro que como um conceito abstrato, ele não pode ser integrado ao cotidiano sem fricções ou modificações. Entretanto, dada a fragmentação pela qual os designers passam, é possível adotar da multitude como um horizonte a partir do qual organizar-se contra a precarização, sem perder a singularidade individual ao se juntar. Tal qual um horizonte, ele abre possibilidades de imaginar modos de trabalhar e viver em conjunto permanecendo singular; nem ser hiper-fragmentado, nem se diluir em uma única massa cinza. Então, imaginar os designers como parte de uma multitude também significa imaginar o que pode acontecer se abrirmos mão de uma abordagem individualista e competitiva em favor de uma experimentação com formas coletivas de fazer e produzir que desafiem os procedimentos de precarização. Desse modo, os designers podem tentar achar uma voz política — tanto a respeito dos seus papeis econômicos quanto sociais — que os vincula a outras lutas: em vez de uma comunidade de design trabalhando precariamente para a acumulação de outros, nós podemos imaginar o que seria controlar as atividades biopolíticas a fim de mudar as relações de poder substancialmente.

Como Judith Revel aponta, controlar a produção biopolítica revela o fato que em um regime de biopoder, além de nossas vidas deterem poder, as próprias vidas se tornam poder: nós não somos apenas disciplinados e controlados, mas também sempre resistimos. Então, o poder pode ser localizado dentro de nossas próprias vidas: no nosso trabalho, linguagens, corpos, afetos, desejos e sexualidade [30]. Então, é ao mobilizar o poder das nossas vidas — em todas as suas diferentes formas — que nós podemos reapropriar o que for necessário para que nossas vidas não sejam precárias. Ao mobilizar o poder de nossas vidas e criatividade, poderíamos tentar seguir o que Revel chama de “resistir e produzir, resistir por meio da produção, produzir enquanto resistimos?” [31]

As ocupações das escolas de ensino básico que ocorreram em todo Brasil entre 2015 e 2016, conhecida como a Primavera Secundarista, também é um exemplo da emergência da multitude.

A demanda de Revel de levar a multitude para a produção e resistência se conecta à demanda autonomista para a “recusa ao trabalho” — uma demanda que foi forte na Itália nos anos 1960 e 70, mas diz respeito, de maneira mais ampla, à tradição de trabalhadores radicais em todo o mundo que “sempre tentaram prescindir do trabalho, subtrairem-se da exploração e da relação capitalista” [32]. Entretanto, quando os autonomistas falam de recusa ao trabalho, eles não apelam pelo fim da atividade, produção ou inovação, mas simplesmente compreendem um movimento de invenção que supera o capital, que provoca relações ainda não imaginadas de produção e reprodução de modos de vida que permitem facilitar a expansão dos poderes criativos [33].

Para os designers precarizados, uma recusa coletiva que supera o que já foi imaginado é poderoso. O que seria mais desafiador e imaginativo de encarar do que usar nossas competências e criatividade para achar modos de desfazer procedimentos de precarização? Essa demanda contra a precarização também fala da libertação do nosso tempo, competências e criatividade da finalidade do mercado, ao passo que instiga designers a contribuir para a imaginação e constituição de uma vida no comum. Essa recusa encoraja o foco no que podemos nos tornar quando imaginamos e engajamos com a expansão das nossas necessidades e desejos coletivos de modos que excedem o que o capital pode “oferecer”. Só quando começarmos a resistir a lógica do mercado e do trabalho e o tipo de subjetividade que nos torna precários é que poderemos contribuir para a constituição de culturas econômicas alternativas não-precarizantes.

Na situação atual de precarização, entretanto, essa recusa não pode ser realizada de um dia para a noite. Portanto, Kathi Weeks estrategicamente sugere que é importante estruturar a demanda contra formas de trabalho capitalistas (logo, contra procedimentos de precarização) em diferentes níveis: reclamar melhores remuneração e trabalho e menos carga de trabalho — mas não para permanecer do jeito que estamos, mas a fim de ganhar espaço que nos permita ser algo diferente [34]. Nós podemos imaginar que, por meio da combinação dessas demandas, seria possível ganhar tempo, dinheiro e serenidade para imaginar e produzir aquilo que pode ser, e aquilo que podemos nos tornar, para além da finalidade prefigurada da profissão de design e do sistema social em que estamos incrustados. O desejo de ir além da finalidade da profissão também requer ir além de nos considerarmos apenas em nossas capacidades como designers. A precarização não se dá apenas no trabalho e, mesmo no trabalho, não é o mesmo para todos; basta apontar as desigualdades de gênero no campo do design [35]. De fato, Weeks também aponta que para que a recusa ao trabalho impacte significativamente na sociedade, ela precisa ser construída de uma perspectiva feminista. Ela argumenta que o sistema social em volta do capital, no qual as mulheres geralmente são instadas a fornecer trabalho de graça, garante que o trabalho assalariado ou depender de um família generizada* são os únicos modos pelos quais a maior parte de nós podem suprir as necessidades básicas [36]. Ainda mais crucial é ela enfatizar como não é o suficiente recusar trabalho assalariado, mas ser necessário construir uma recusa que também lide com o modelo de família generizada e privatizada como uma estrutura central organizadora da nossa reprodução [37]. Apenas pela recusa do trabalho que é controlado pelo capital tanto no mercado quanto na família é que a estratégia de recusa pode realmente incorporar uma política transformadora do cotidiano. Essa política pode produzir demandas ainda não-formuladas que lidam com relações pessoais e configurações domiciliares nas quais nós preferíssemos pautar a (re)produção dos nossos modos de vida [38].

É importante que os designers tenham em mente a precarização e esse duplo movimento dentro e fora do trabalho, já que o campo profissional ainda se utiliza de concepções influenciadas por uma visão de mundo masculina, tanto sobre o que é compreendido como um design bom e proveitoso assim como no sexismo latente (às vezes, nem tanto) presente da própria profissão. Sem desafiar essa concepção centrada no masculino, que se manifesta dentro e fora do design, é difícil imaginar que a recusa do trabalho e a precarização seguiriam para onde todes nós gostaríamos de estar. Esse duplo movimento contra a precarização, então, nos convoca — e isso é crucial — a perguntar coletivamente sobre nossas vidas fora do trabalho: como gostaríamos de viver, como queremos nos relacionar uns com os outros, como queremos reproduzir nossas vidas? Na próxima seção, analisaremos como uma moradia que foi configurada para engajar com essas questões na prática, formular e experienciar respostas experimentais com outros designers social e politicamente engajados.

Notas

[1]: Marina Vishmidt, “Crise reprodutiva permanente: Uma entrevista com Silvia Federici.” Mute, <https://www.metamute.org/editorial/articles/permanent-reproductive-crisis-interview-silvia-federici>

[2]: Para uma visão histórica geral do desenvolvimento do autonomismo e marxismo feminista a partir do Operaísmo, ver a introdução de CLEAVER, Harry. Reading Capital Politically. Austin: University of Texas Press.

[3]: Jim Fleming, “Prefácio do editor”, in: NEGRI, Antonio. Marx além de Marx: ciência da crise e da subversão. Caderno de trabalho sobre os Grundrisse. São Paulo: Autonomia Literária.

[4]: Antonio Negri, The Politics of Subversion: A Manifesto for the Twenty-First Century (Cambridge: Polity Press, 2005), p.204.

[5]: Sylvère Lotringer and Christian Marazzi, “The Return of Politics,” in Autonomia: Post-Political Politics, ed. ibid. (Cambridge, Massachusetts: Semiotext(e), 2007), p.9.

[6]: ‘Autonomamente’ refere-se ao fato em que esses esforços não se contentaram em confiar nas instituições hierarquicamente organizadas como sindicatos e partidos para que suas demandas fossem ouvidas. Ao invés, encontraram-se maneiras de se conectar horizontalmente entre os sujeitos para se auto-organizarem e comandarem greves e outras formas de resistência.

[7]: Esse tipo de análise assim como a exploração de possíveis ações contra-hegemônicas refere-se ao pensamento foucaultiano de confrontar as relações de poder: Foucault, “Subject and Power,” p.210.

[8]: HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão: guerra e democracia na era do Império. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.

[9]: Citação de Deleuze em: HARDT, M.; NEGRI, A. Bem-estar comum. Rio de Janeiro: Record, 2016;

[10]: Michael Hardt and Antonio Negri, Empire (Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2000), p.22–41.

[11]: HARDT, M.; NEGRI, A. Bem-estar comum. Rio de Janeiro: Record, 2016;

[12]: Ibid, p.57;

[13]: Ibid, p. 353;

[14]: Ibid, p.viii;

[15]: Para uma elaboração da diferença entre privado, público e o comum, ver Ibid, p. 272–73. Ver também Ugo Mattei, “Eine Kurze Phänomenologie Der Commons,” in Commons: Für Eine Neue Politik Jenseits Von Markt Und Staat, ed. Silke Helfrich (Bielefeld: transcript, 2012)

[16]: Para a reflexão de Paolo Virno sobre as ambiguidades do pós-fordismo e trabalho, ver: Paolo Virno, A Grammar of the Multitude: For an Analysis of Contemporary Forms of Life (Los Angeles, New York: Semiotext(e), 2004); Paolo Virno, Mondanità: L’ Idea Di ‘Mondo’ Tra Esperienza Sensibile E Sfera Pubblica (Roma: Manifestolibri, 1994).

[17]: Matteo Pasquinelli, Animal Spirits: A Bestiary of the Commons (Amsterdam/Rotterdam: NAi Publishers / Institute of Network Cultures, 2008), p.49

[18]: HARDT, M.; NEGRI, A. Bem-estar comum. Rio de Janeiro: Record, 2016;

[19] Pasquinelli, Animal Spirits, p.81.

[20] Além disso, os autonomistas defendem que é na cidade que a produção biopolítica do comum prospera, mas onde o capital simultaneamente parasita o comum e as pessoas que o produzem com entusiasmo. Essa parasitose toma a forma de trabalho precarizados, débitos e aluguéis. Para a discussão dessa relação, veja por exemplo: ibid.

[21] Bas Van Abel et al., eds., Open Design Now: Why Design Cannot Remain Exclusive (Amsterdam: BIS Publishers, 2011), p.11.

[22] Bre Pettis, “Made in My Backyard,” in Open Design Now: Why Design Can Not Remain Exclusive, ed. Bas van Abel, et al. (Amsterdam: BIS Publishers, 2011).

[23] P2P Foundation, “A Synthetic Overview of the Collaborative Economy,” (2012), p.203.

[24] Veja as passagens sobre a indústria moderna doméstica e sua transformação em: Marx, Capital. V1, p.555–601.

[25] P2P Foundation, “Collaborative Economy,” p.165.

[26] Ibid., p.166.

[27] Hardt and Negri, Multitude, p.xiv.

[28] Ibid., p.94.

[29] Para entender como Hardt e Negri, assim como Virno relaciona a Ética e o Tractatus Politicus de Spinoza, ver: ibid., p.189–94. Virno, Grammar of the Multitude, p.21–20. See also: Antonio Negri, The Savage Anomaly: The Power of Spinoza’s Metaphysics and Politics (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1991).

[30] Revel, “Biopolitica Della Moltitudine,” p.65.

[31] Minha tradução de: “Opporsi e produrre, opporsi producendo, produrre opponendosi (…)”, ibid.

[32] Michael Hardt, “Introduction: Laboratory Italy,” in Radical Thought in Italy: A Potential Politics, ed. Michael Hardt and Paolo Virno (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996), p.5. See for example also: Paul Lafargue, “The Right to Be Lazy,” in The Right to Be Lazy: Essays by Paul Lafargue, ed. Bernard Marszalek (Oakland: AK Press, 2011).

[33] Hardt and Negri, Commonwealth, p.332–33. Entretanto, a recusa ao trabalho é também afeta diretamenta a acumulação de capital porque o valor dos meios de produção não está sendo passado para as mercadorias. Então, greves, greves selvagens, demissões em massa, reduzindo ou sabotando a produção são todos meios efetivos para pressionar os empregadores e o Estado.

[34] Kathi Weeks, The Problem with Work: Feminism, Marxism, Antiwork Politics, and Postwork Imaginaries (Durham: Duke University Press 2011), p.104.

[35] Ver por exemplo a diferença que ter filhos faz para designers homens e mulheres: Cantiere per pratiche nonaffermative, “Designers’ Inquiry” p.25.

[36] E de fato, muitos designers precisam do auxílio da família para se manter na profissão. Ver: ibid., p.11–13.

[37] Weeks, Problem with Work, p.110.

[38] Ibid., p.169–70.

--

--

eduardo souza

sempre isto ou sempre outra coisa, ou nem uma coisa nem outra | professor, designer e ilustrador | https://linktr.ee/souza_eduardo