resenha: there's someone inside your house (2021)

não há nada de particularmente interessante nesse filme, a não ser o modo ululante como ele deixa transparecer os sintomas do realismo capitalista.

eduardo souza
4 min readJun 20, 2022

o anúncio de que foi produzido pelas mesmas pessoas de «stranger things» parecia ser, no trailer, um atributo positivo; pra mim, foi uma red flag, no pior dos casos, e uma chave de leitura no melhor deles. a série é famosamente bem-sucedida por ter sido feita sob medida a partir de dados e algoritmos e, no processo, assimilou a linguagem dos kidpix e sci-fi dos anos 80.

sabemos que a assimilação do passado como “mero estilo” é uma característica fundamental do pós-modernismo cultural, que se desenvolveu e estrutura, hoje, o realismo capitalista. a ~polêmica~ anticomunista recente da última temporada da série, novamente, deixa isso evidente: não há reflexão ou análise sobre o passado, há apenas uma repetição formal e desistoricizada. há, em suma, uma mercantilização do passado.

isso se repete neste filme. embora evidentemente ambientado nos dias atuais, há elementos “retrô” como toca-fitas no carro, mas também uso da linguagem cinematográfica dos filmes de terror clássicos — a mais patética são as cenas com os telefones fixos das casas.

entretanto, esse não é o aspecto que me parece mais interessante de discutir. o mais interessante é a ideia de interpassividade, apresentada no contexto da análise cultural por zizek e retomada por mark fisher. a ideia básica da interpassividade é que a obra ficcional performa determinados comportamentos *para que nós não precisemos performar*. é, basicamente, o que aristóteles compreendia como catarse: a liberação da energia e da pulsão por meio da ficção. é próximo ao que a psicanálise identifica na fantasia.

isso fica evidente logo na primeira sequência, quando a vítima é alguém “mau”, — e o filme se esforça para reforçar o desprezo pelo assassinado em diversas falas do roteiro. ele e a segunda vítima “mereciam ser mortos” porque eram personificações (espantalhos) daquilo contra o qual os “progressistas” lutam hoje: misoginia, racismo, supremacia branca, conservadorismo religioso, etc. aqui, acho que não preciso elaborar muito como a interpassividade engendrada pelo filme captura e dociliza os impulsos de luta e revolta contra essas forças reacionárias.

ao longo do filme, somos apresentados ao capitalista guloso e opressor, que corrói o sistema usando o seu dinheiro: ele monopoliza as terras e quer privatizar a segurança da cidade. ele se aproveita da crise e do desespero das pessoas e compra suas terras a preço de banana. ele corrompe a polícia, deixando-a ineficaz para justificar sua privatização. aqui no brasil, sabemos muito bem como isso opera.

mais interessante ainda é quando somos revelados quem é o assassino — o “mistério” do filme. o vilão é o filho desse capitalista, zach. ele se sente oprimido pois a sua comunidade explicita seus privilégios: todos *sabem* que ele nunca vai ser punido por fumar maconha, que ele nunca vai ser preso, etc, e expõem seu privilégio — que ele reconhece. entretanto, ele não gosta disso porque se sente apartado do “resto da comunidade”.

entretanto, para ele, isso é injusto; ele seria oprimido pois só ele é impedido de “usar uma máscara” — e contra sua vontade. afinal, ele não escolheu nascer rico. sua motivação, portanto, seria “tirar a máscara” de todos os outros que, tal qual ele, são igualmente hipócritas, mas se escondem.

caberia uma análise geracional de como zach representa o realismo capitalista (amparado nas dimensões culturais, descolado, “progressista”), enquanto o pai representa o capitalismo do século 20 (latifundiário, opulento com suas caminhonetes e mansão). a apropriação esvaziada do passado, típica do realismo capitalista, é demonstrada no filme quando zach transforma a coleção de “relíquias” naz/stas de seu pai em artefatos para fumar maconha.

mas, para além disso, que zach seja o assassino é uma perfeita ilustração do conceito de obsceno para baudrillard. até há pouco tempo, ainda havia _sedução_: era o decoro e as regras sociais, a diplomacia e o comportamento “adequado”.

hoje, o realismo capitalista não se preocupa mais em seduzir; antes, ele se tornou obsceno: não é mais segredo que ele destrói tudo, que ele é injusto e opressor, que ele corrompe o sistema e destrói a comunidade. todos sabem que zach nunca vai sofrer nenhuma sanção, assim como todos sabem, desde 2008, que os grandes banqueiros jamais irão à falência.

a maior ambição de zach era matar seu pai, o grande opressor. não vou discutir as implicações obviamente psicanalíticas disso, mas a sequência em que o pai de zach é morto e ele, logo depois, também, revela a catarse e a interpassividade que, mais uma vez, reforça o realismo capitalista. as vísceras do capitalismo são expostas, o filme performa a “morte” d’O Capitalista e sua expressão cultural — mas nada acontece.

quando o filme acaba, tudo continua “como deveria ter sido”: o resto da turma segue sua vida e vai para a universidade, “fazer o que sonha”.

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eduardo souza

sempre isto ou sempre outra coisa, ou nem uma coisa nem outra | professor, designer e ilustrador | https://linktr.ee/souza_eduardo