F*da-se conteúdo (2009)

eduardo souza
6 min readNov 18, 2021

Nota do tradutor: Tradução livre do segundo texto de Michael Rock, Fuck content. Recomendo a leitura do primeiro texto, bem anterior, Designer enquanto autor, já que esse segundo é uma decorrência direta de uma má interpretação, segundo o próprio Rock, do primeiro.

Em Designer enquanto Autor, eu argumentei que somos inseguros acerca do valor de nosso trabalho. Nós temos inveja do poder, posição social e do prestígio que artistas e autores parecem comandar. Declarando-nos “designers/autores”, pretendemos obter um respeito parecido. Nossa profunda ansiedade nos levou a um movimento em design que valoriza a originação de conteúdo sobre sua manipulação.

Designer enquanto Autor foi uma tentativa de recuperar o ato de design em si como essencialmente linguístico — uma linguagem vibrante, evocativa. Entretanto, ela foi frequentemente lida como um chamado aos designers para gerar conteúdo: com efeito, para que se tornassem designers e autores, não designers enquanto autores. Embora eu seja totalmente pró-mais autores, não era exatamente essa a questão que queria defender.

O problema é de conteúdo. O erro é pensar que sem um conteúdo profundo, design é reduzido a puro estilo, um saco de truques ambíguos. Em círculos de design gráfico, forma-segue-função é reconfigurada como forma-segue-conteúdo. Se conteúdo é a origem da forma, sempre a precedendo e a impregnando de sentido, forma sem conteúdo (como se isso fosse sequer possível) é um tipo de casca vazia.

A apoteose dessa noção, repetida ad nauseum (ainda!), é a famosa metáfora do Cálice de Cristal de Beatrice Warde, que defende que o design (o cálice) deveria ser um veículo transparente para o conteúdo (o vinho). Qualquer um em favor do ornado ou decorado era um babaca primata. Agitadores dos dois lados do espectro ideológico entraram no debate: minimalistas abraçaram-na como um manifesto; maximalistas denunciavam-na como fascismo estético. Nenhum dos campos questionou a premissa básica e implícita: é tudo sobre o vinho.

Essa falsa dicotomia circulou por tanto tempo que nós mesmos começamos a acreditar nela. Ela se tornou a principal doutrina da educação de design e a referência pela qual todo design é julgado. Nós parecemos aceitar o fato que desenvolver conteúdo é mais essencial do que dar-lhe forma, que bom conteúdo é a medida do bom design.

Lá atrás quando Paul Rand escreveu “Não há conteúdo ruim, só forma ruim”, eu lembro ter ficado muito irritado. Eu entendi como abrir mão da responosabilidade do designer sobre o significado. Com o tempo, eu comecei a lê-lo diferente: ele não estava defendendo discursos de ódio, enganação ou banalidade; ele quis dizer que a visão do designer é configurar, não escrever. Mas esse mero configurar é uma forma de afeto muito profundo¹. (Talvez essa seja a razão que designers modernos — Rand, Munari, Leoni — sempre acabam suas carreiras projetandos livros infantis. O livro infantil é o território mais puro do designer/autor porque seu conteúdo é negligenciável e o potencial evocativo da forma é ilimitado.)

Então, o que há de novo? Isso mais parece ser um ponto óbvio, mas por alguma razão, nós não realmente acreditamos nele. Nós não acreditamos que configurar é o suficiente. Então para livrar o design das amarras do conteúdo, nós precisamos dar um passo adiante e observar que o tratamento é, de fato, um tipo de texto em si, tão complexo e referencial quanto qualquer outro entendimento de conteúdo.

Um diretor pode ser auteur notável de um filme que ele não escreveu, editou, filmou ou cuja trilha não compôs. O que faz de um filme de Hitchock um filme-de-Hitchcock não é a história, mas a consistência de estilo, que se mantém intacta por diferentes tecnologias, enredos, atores e períodos de tempo como uma substância em si. Todo filme é sobre cinema. Seu grande gênio é que ele é capaz de moldar a forma em seu estilo de modo genuinamente único e cativante. O sentido do seu trabalho não está na história, mas no storytelling.

Designers também lidam com storytelling. Os elementos que precisamos dominar não são o conteúdo das narrativas, mas os dispositivos narrativos: tipografia, linha, cor, contraste, escala e peso. Nós argumentamos através de nossa tarefa, literalmente nas entrelinhas.

A existência do design gráfico não é uma história de conceitos, mas de formas. Forma evoluiu dramaticamente de ano a ano, e sugere uma profissão que continuamente revise e remodele o mundo através do modo que é mostrado [rendered]. Exemplos inesquecíveis de design gráfico, design que muda o modo como olhamos o mundo, são geralmente encontrados em serviços de conteúdo mais cotidiano: cirgarros, velas de ignição ou maquinário. Pense nos catálogos de Piet Zwart de cabos elétricos; ou nos posters de viagem de Cassandre ou Matter; ou o trabalho New Wave de Weingart, Greiman e Freidman; ou as incitações punk de Jamie Reid, nos quais a manipulação da forma tem um significado essencial, até transformador.

Em 1962, em uma conferência no MoMA, o crítico de arte conservador Hilton Kramer denunciou Pop Art como “indistinguível da arte publicitária” porque “Pop Art não nos diz o sentimento de estar vivendo o presente momento da civilização. Seu efeito social é apenas para nos reconciliar com um mundo de commodities, banalidades e vulgaridades.” Mas talvez o conteúdo do design gráfico seja exatamente este: a evocação do “sentimento de viver o presente momento da civilização”, com todas as suas “commodities, banalidades e vulgaridades.” Qual seria outra maneira de discutir o conteúdo de uma tipografia ou porque a tipografia de uma revista de surfe de repente se torna relevante? Ou como uma série de cartazes — já uma mídia de funcionalidade dúbia — inventados ou ‘auto-iniciados’ podem parar nas paredes de um grande museu de design? O trabalho deve estar dizendo alguma coisa, que é diferente de ser sobre alguma coisa.

Dado que a natureza do objeto de design é limitada, objetos individuais raramente são substanciais o suficiente para conter ideias formatadas totalmente. Ideias se desenvolvem ao longo de muitos projetos, levando anos. A forma em si é indicativa. Nós estamos intimamente, fisicamente conectados ao trabalho que produzimos, e é inevitável que nosso trabalho carregue nossa identidade. A escolha dos projetos da obra de cada designer mostra um mapa de interesses e predisposições. (Eu uso o singular designer no sentido categórico, não individual.) O modo como esses projetos são analisados, desconstruídos, reorganizados e formatados revelam uma filosofia, uma posição estética, um argumento e uma crítica.

Essa profunda conexão com o fazer também posiciona o design em um papel articulador entre o usuário e o mundo. Manipulando a forma, o design reconfigura essa relação em potncial. Forma é substituída por troca. As coisas que fazemos negociam uma relação sobre a qual nós temos um profundo controle.

O truque é achar maneiras de argumentar através do tratamento, via uma possibilidade de dispositivos retóricos — do escrito ao visual ao operacional — para fazer essas proclamações tão aguda quanto possível, e retornar consistentemente a ideias centrais, para reexaminá-las e reexprimí-las. Dessa maneira, nós construímos um corpo de trabalhos, e desse corpo emerge uma mensagem singular, talvez até o sentimento de viver agora. Como um popular crítico de cinema uma vez escreveu, “Um filme não é sobre o que ele é, é sobre aquilo como ele é.” Da mesma maneira, para nós, nosso O que é um Como. Nosso conteúdo é, perpetuamente, Design em si.

¹ No original, “But that shaping itself is a profoundly affecting form”. Essa frase é particularmente difícil de traduzir devido aos diversos significados que affecting, e, sobretudo, form poderiam assumir. De uma maneira mais ampla, pelo conteúdo do resto do texto, acredito que ele quer dizer que a forma influencia de maneira muito forte as relações de cada indivíduo com o mundo.

--

--

eduardo souza

sempre isto ou sempre outra coisa, ou nem uma coisa nem outra | professor, designer e ilustrador | https://linktr.ee/souza_eduardo